Rory: Se a casa estivesse pegando fogo, o que você salvaria primeiro: o bolo ou a mim?
Lorelai: Não é justo! O bolo não tem pernas! (T2E3: “Red Light on the Wedding Night”)

Em algum lugar entre conversar e ler, está a terceira paixão dessa série: a comida. O Luke a prepara, o Taylor a vende, a Emily e o Richard pagam o colégio para que Lorelai e Rory venham comê-la com eles e todo mundo fala dela incansavelmente.

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Gilmore Girls deixa claro seu interesse por comida desde seu primeiro episódio, como mostra a conversa entre Emily e Lorelai:

Emily: A educação é a coisa mais importante do mundo, assim como a família.
Lorelai: E torta. [Silêncio] Brincadeira. (T1E1: “Pilot”)

Mas ela não está brincando. A comida tem um papel em Stars Hollow e na vida das Gilmore que se iguala à educação e à família. Ela é quase um personagem, um dos meios de comunicação da série, define as pessoas e até passa a mensagem de vários episódios.

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A comida é mais do que uma refeição em Gilmore Girls. Ela tem o papel de antecipar o enredo e comunicar as ideias centrais de um episódio:

Quando Sookie teve desejos em sua gravidez, Jackson saiu pra comprar a comida que ela pediu, para depois descobrir que ela não desejava mais aquilo quando ele voltou. Logo após, Emily – separada de Richard – decidiu que queria namorar. Depois de seu primeiro encontro, porém, ela chegou em casa e chorou. Assim como Sookie, ela desejava algo que ela no fundo não queria. (T2E9: “Emily Says Hello”)

O leilão das cestas de piquenique em que a comida deveria ser dividida entre o comprador e o dono da cesta, contanto que o comprador não soubesse seu conteúdo até comprá-la, simbolizou a incerteza dos relacionamentos dos cidadãos de Stars Hollow. Jess ofereceu mais pela cesta de Rory do que Dean e isso representou o conteúdo incerto de qualquer triângulo amoroso. A cesta de Lorelai e Luke representou a incerteza de seu relacionamento – aquilo era amizade ou algo a mais? A cesta de Sookie simbolizou a incerteza dela e de Jackson quanto ao seu futuro. (T2E13: “A-Tisket, A-Tasket”)

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Até comida estragada tem papel simbólico. Um cheiro horrível na praça da cidade veio dos 59 ovos de Páscoa podres que não foram encontrados durante a caça da semana passada. Após isso, quando Rory e o casado Dean revelaram um ao outro uma afeição escondida há algum tempo e o pai de Jason revelou o segredo de que Lorelai e Jason estavam namorando, nós compreendemos a mensagem daquele episódio: que certas coisas não devem ficar escondidas, senão começam a cheirar mal. (T4E18: “Tick, Tick, Tick, Boom!”)

Cenas envolvendo comida no começo dos episódios costumam preparar ideias e eventos que se desenvolvem mais tarde. Um episódio começou com Lorelai experimentando pedaços de bolo para seu casamento com Max, enquanto Fran explicava para ela a importância de escolher o bolo certo. No fim do episódio, Lorelai rompeu seu noivado, decidindo que Max simplesmente não era o pedaço de bolo certo. (T2E3: “Red Light on the Wedding Night”)

Quando a empregada de Emily pôs nozes na salada e ela decidiu demiti-la, Lorelai contou uma história com a seguinte moral: “O que eu quero dizer é que às vezes comer nozes é melhor do que ser assassinado ou morrer queimado durante o jantar”. Isso significa que às vezes brigar por coisas pequenas, como nozes, não vale a pena. Esse é um bom conselho que Luke, Lorelai e Rory precisavam aprender. Quando Luke flagrou Rory e Jess se beijando em seu apartamento, ele exagerou no ponto e tentou controlar a relação deles – até aprender a relevar as pequenas coisas. Depois, quando Richard enganou Rory para levá-la a uma entrevista em Yale mesmo sabendo de sua preferência por Harvard, Lorelai e ela ficaram furiosas. Contudo, o episódio terminou com ambas sentadas em suas respectivas camas lendo panfletos de Yale, o que mostrou que às vezes é melhor mesmo comer as nozes. (T3E8: “Let the Games Begin”)

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Num dos episódios, o tema da morte recebeu tratamento especial de maneira figurativa e divertida. Começa no Luke’s, com Lorelai contando para Rory as premonições que teve sobre sua própria morte, que envolviam comida (como escorregar numa casca de banana e cair num tanque de creme), indicando que Lorelai passaria por algum tipo de morte. No mesmo momento, Luke traz hambúrgueres para elas, aos quais, pela primeira e única vez na série, ele se refere como “vaca morta”. Quando Lane entra na lanchonete, ela morde um pedaço da “vaca morta” de Rory e depois vai embora, levando o hambúrguer com ela. Isso indica que Lorelai e Lane estariam ligadas neste episódio pelo tema da morte. De fato, elas são as duas personagens citadas no título do episódio e o que as conecta é o sentido cômico da morte. Posteriormente, Lane, numa brincadeira com a palavra morte (representada no título), resolveu tingir (dye) seu cabelo de roxo num ato de desafiar sua mãe, enquanto Lorelai, cumprindo suas premonições, figurativamente morre (die) em seu desastroso discurso no colégio de Stars Hollow – já que ela achava que o mesmo seria um sucesso. (T3E4: “One’s Got Class and the Other One Dyes”)

Em outro momento, Lorelai reclamou quando Luke mudou o prato especial para “Omelete especial do Luke”. Ela pediu o prato, mas deixou Luke frustrado ao mudar tudo o que ele tinha de especial até se tornar uma omelete comum. Dessa forma, o tema era: mudar o conteúdo de algo leva à frustração. Consequentemente, Lane ficou chateada quando um teste de vocação no colégio confirmou que ela deveria trabalhar com vendas, o que alteraria o conteúdo de suas perspectivas. Michel ficou chateado quando Lorelai disse à sua mãe que ele não comia carboidratos, fazendo com que ela se tornasse mais invasiva em sua vida e mudasse o conteúdo de seu relacionamento com ela. Richard ficou chateado quando o projeto escolar que ele ajudou Rory a montar não venceu a competição, o que o fez pensar se sua aposentadoria havia alterado o conteúdo de sua vida. Por sua vez, Dean ficou chateado ao pensar que a queda que Rory tinha por Jess talvez mudasse o conteúdo de seu relacionamento. (T2E18: “Back in the Saddle Again”)

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No terceiro episódio da sétima temporada, “Lorelai’s First Cotillion”, Lorelai questiona se ela realmente gosta de Pop-Tarts (marca de biscoito pré-cozido recheado produzido pela Kellogg):

Lorelai: E se eu não gosto do que eu gosto porque minha mãe não gosta e não quer que eu goste? E se, na verdade, eu não gosto das músicas que eu gosto ou dos filmes ou das roupas ou dos homens? E se eu não gosto do que eu acho que gosto? Eu lembro da primeira vez que comi uma Pop-Tart. Foi na casa da minha amiga Erica Catcha e ela disse: “você quer uma Pop-Tart?” E eu sabia que minha mãe odiaria a ideia de me ver comendo uma Pop-Tart. Então, eu comi uma. Eu abri o saquinho prateado, mordi um pedaço e pensei que nunca tinha experimentado algo tão gostoso. Achei que tinha sabor de liberdade. A Pop-Tart tinha sabor de liberdade, rebeldia e independência. Mas agora estou pensando e não sei se eu gosto de Pop-Tarts. E se eu não gosto de Pop-Tarts? Eu teria gostado de Pop-Tarts se Richard e Emily tivessem me servido Pop-Tarts numa bandeja prateada e tivessem me obrigado a comer cada pedaço? Eu não sei.

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Apesar de seu jeito egoísta de ser, a Emily às vezes tenta colocar os interesses de Lorelai e Rory acima dos seus. Quando isso acontece, ela expressa seus esforços simbolicamente através da comida. Em um jantar de sexta em homenagem a Rory, Emily deixou de lado sua arrogância e serviu as comidas favoritas de Rory (T2E2: “Sadie, Sadie”). Porém, nem sempre suas boas intenções funcionam. Quando ela amassou bananas e passou numa torrada para Lorelai, dizendo que ela gostava de comer aquilo quando era pequena, acabou sendo tão ruim quanto era quando Lorelai era criança. (T1E9: “Rory’s Dance”)

O maior exemplo da tentativa de Emily de ser altruísta através do simbolismo da culinária é o pudim. Num jantar de sexta, Emily serviu pudim de sobremesa e Lorelai ficou chocada, devido ao fato de que Emily não só odiava pudim como também achava que era comida de hospital. Para Lorelai, o pudim simbolizou Emily colocando os interesses de alguém acima dos seus. Então quando Lorelai a levou para comprar um presente para Rory e Emily insistiu em escolher presentes que ela gostaria de ganhar em vez dos que Rory gostaria de ganhar, Lorelai a aconselhou a “pensar no pudim”. Funcionou, mas por pouco tempo. Mais tarde, Emily agiu com egoísmo em relação a Rory, e Rory preferiu não dizer a Lorelai por causa do “pudim”, como confirmou sua conversa com Lane:

Rory: Minha avó serviu pudim numa noite dessas e depois ela foi fazer compras com minha mãe e elas não brigaram. Eu não sei… quero dizer, elas nunca se dão bem e agora, de repente, elas estão se entendendo, e eu sei que se eu disser pra minha mãe sobre os convites, ela vai ficar furiosa e vai ligar pra minha avó e então vai ser o fim do pudim.
Lane: Você sabe que dá pra comprar pudim, né? (T1E6: “Rory’s Birthday Parties”)

É claro que dá pra comprar pudim, mas não dá pra comprar o que o pudim simboliza – a preocupação com o outro. Em Gilmore Girls, o que importa não é a comida, mas o que ela representa: a celebração da vida e a alegria de viver numa comunidade onde as pessoas realmente se importam umas com as outras.

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Especial baseado no texto de Gregory Stevenson para o livro Coffee at Luke’s, de Jennifer Crusie. Stevenson é professor de religião e grego na Faculdade Rochester. Após escrever sobre arqueologia, decidiu fazer pesquisas ouvindo música e assistindo TV.

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