Olhando para sua aclamada carreira no teatro e na TV, a atriz Kelly Bishop não tem nada além de gratidão.
“O que provavelmente mais me impressiona em tudo isso é o quão sortuda eu fui, não apenas pelos trabalhos que consegui, mas pelo que aconteceu com esses trabalhos”, diz Bishop, de 80 anos, à revista People na edição desta semana. “Eu não estava procurando por um presente. Eu queria um trabalho interessante… Fui muito, muito sortuda.”
Enquanto escrevia seu livro de memórias The Third Gilmore Girl, que será lançada em 17 de setembro pela Gallery Books nos Estados Unidos (disponível na Amazon Brasil), a vencedora do Tony, de 80 anos, teve a oportunidade de refletir sobre o que há de bom em sua vida — tanto na carreira quanto fora das telas.
Nascida no Colorado e criada por uma mãe solo, Jane, após o divórcio dos pais, Bishop começou originalmente como dançarina. Depois de se mudar para Nova York na juventude, ela começou a trabalhar no teatro, incluindo o papel original de Sheila no inovador musical da Broadway A Chorus Line — um papel inspirado na própria vida de Bishop.
No entanto, Bishop sempre quis atuar, e esse sonho a levou a papéis em projetos como o clássico filme Dirty Dancing: Ritmo Quente e a série do Prime Video A Maravilhosa Sra. Maisel. Talvez o mais amado desses papéis seja o de Emily Gilmore, a rica e, ocasionalmente, melancólica matriarca da série Gilmore Girls, exibida pela WB e CW entre 2000 e 2007. Foram as semelhanças de Emily com as dinâmicas de sua própria mãe e avó, além do sarcasmo de Emily, que atraíram Bishop para o papel.
“Ela era uma mulher tão difícil, e eu adoro interpretar mulheres difíceis”, diz Bishop. “Eu prefiro muito mais essas do que as mães boazinhas.”
Mas Bishop nem sempre achou que conseguiria o papel de Emily, como ela relata em suas memórias. Leia a história completa, ou ouça em formato de áudio, um trecho exclusivo (em inglês, narrado pela própria Kelly) de The Third Gilmore Girl abaixo.
A ligação veio do meu agente, um homem chamado Robert Attermann. Eu finalmente havia encontrado um agente em quem podia confiar, respeitar e até socializar e receber em família. Robert e eu falávamos várias vezes ao dia, como sempre acontecia nessa época do ano por causa de uma tradição de Hollywood chamada temporada de pilotos.
A temporada de pilotos era um ritual de início de primavera em que os canais de TV encomendavam pilotos a partir das dezenas de roteiros que recebiam, escalavam o elenco, gravavam, testavam em grupos de foco e depois ou davam sinal verde para transformá-los em séries, ou os descartavam sem cerimônia. Era uma agitação anual — roteiristas enviando roteiros de pilotos; os roteiros aprovados sendo encaminhados para agentes de talentos; agentes enviando esses roteiros para clientes que poderiam ser adequados e estivessem disponíveis, e nós, clientes, recebendo uma pilha de roteiros para ler e fazer testes, caso estivéssemos remotamente interessados, ou apenas precisando do cachê, mesmo que não estivéssemos interessados.
A temporada de pilotos de 2000 foi a agitação de sempre. A série Família Soprano havia estreado em 1999 e se tornado um grande sucesso, então era previsível que quase todos os roteiros de meia hora que eu lia tentassem capitalizar nesse sucesso em formato de comédia, um sitcom atrás do outro sobre, que surpresa, uma família italiana. Muitos de nós, pessoas do teatro, gostávamos de fazer sitcoms pela familiaridade de atuar para uma plateia ao vivo, mas nenhum desses roteiros me atraía, nem um pouco.
Essa ligação específica de Robert foi para me alertar sobre outro roteiro que ele havia acabado de enviar e que achava que eu poderia querer dar uma atenção especial. Ele o descreveu como “uma dramédia interessante de uma hora”. OK, eu ainda não tinha lido nenhum desses. Mas o que me intrigou ainda mais foi o fato de que, felizmente, o título não soava nem um pouco italiano.
Chamava-se Gilmore Girls, e Robert queria que eu fizesse teste para o papel de Emily, a matriarca da família Gilmore.
Eu disse que daria uma olhada e o informaria se quisesse seguir adiante. Então me sentei para ler o roteiro, e foi amor à primeira vista. Nunca tinha lido nada parecido. A roteirista, Amy Sherman-Palladino, era obviamente brilhante. O diálogo era inteligente, afiado e imprevisível. O humor era um deleite, e totalmente único.
Talvez o mais impressionante de tudo foi que, quanto mais eu estudava, mais surpresa ficava com o quão profundamente me identificava com as dinâmicas de relacionamento das próprias garotas Gilmore:
Lorelai. 32 anos. Apenas 16 quando engravidou de sua filha, Rory, para a desaprovação severa e julgadora de seus pais ricos e da alta sociedade. Insiste em conquistar tudo o que tem, em vez de esperar que lhe seja dado. Ama sua filha com fervor e escolhe ser sua melhor amiga, além de mãe — muito parecido com o que minha mãe era comigo.
Rory. 16 anos, doce, muito educada e um pouco socialmente desajeitada. Uma excelente aluna com paixão pela literatura clássica, aspirante a jornalista e correspondente estrangeira. Aprecia profundamente sua amizade com a mãe e os desafios que ela enfrentou para criá-la com tanto amor e tão pouco apoio familiar — muito parecido com o que eu sentia em relação à minha mãe.
Emily, mãe de Lorelai. Casada há décadas com Richard, um conservador e determinado executivo de seguros. Rica e socialmente proeminente. Opiniosa, rígida, difícil de agradar, uma mulher com quem eu nunca seria amiga na vida real. E, exceto pelas vastas diferenças em seus contextos, estranhamente parecida com a mãe de minha mãe, a quem eu chamava exclusivamente de Louise. De alguma forma, aos olhos de Louise, era aparentemente culpa da minha mãe que ela tivesse sido concebida quando Louise tinha 16 anos, e ela a ressentiu por isso a vida toda. Aos olhos de Louise, minha mãe nunca fazia nada certo, embora minha mãe sempre tentasse tanto agradá-la. Eu nunca consegui entender o que Louise achava que ganharia ao deliberadamente negar amor e aprovação a uma filha tão incrível.
Graças a esse roteiro extraordinário, eu poderia ter a oportunidade de explorar Louise e sua relação tensa com minha mãe ao explorar Emily e sua relação tensa com Lorelai, e, para acrescentar à perfeição, interpretar uma mãe fria, condescendente e emocionalmente distante, o que é infinitamente mais divertido do que interpretar uma mãe boazinha. Liguei para Robert no instante em que terminei de ler com um simples e enfático “Sim, por favor”.
* * *
Eu estava mais empolgada do que nervosa quando peguei o trem para Nova York para gravar meu teste para Gilmore Girls. Sempre acreditei que parte do meu trabalho como atriz é aprender minhas falas e fazê-las funcionar exatamente como estão escritas, palavra por palavra, sem improvisar, especialmente em um roteiro tão perfeito quanto este, então trabalhei muito duro nele e na personagem de Emily, para internalizá-la em vez de simplesmente “recitar” ou “interpretar”.
Uma das primeiras pessoas que conheci na audição foi Amy Sherman-Palladino. Eu já sabia, pelo roteiro, que ela era inteligente, com um senso de humor afiado e não convencional. Ficou imediatamente claro que ela também tinha uma autoconfiança eclética, algo como uma lufada de ar fresco. Eu havia lido que ela cresceu em North Hollywood, Califórnia, o que sempre me pareceu um subúrbio meio sem graça e sem personalidade de Los Angeles. Fiquei intrigada ao descobrir que ela, na verdade, me parecia alguém que facilmente poderia ter nascido e sido criada em algum charmoso bairro boêmio do Greenwich Village. Não havia pretensão nela, nem esperteza, nem bajulação política ou rodeios, apenas uma mulher que sabia o valor do seu trabalho, a qualidade do seu projeto e tinha muita clareza sobre como ele deveria ser feito.
Eventualmente, descobri que, em outro momento, ela foi uma talentosa aspirante a dançarina, que recusou um emprego no elenco de uma turnê off-Broadway do musical Cats para integrar a equipe de roteiristas da série de TV Roseanne. Quando criança, ela até estudou no Ballet La Jeunesse, em Toluca Lake, Califórnia, a mesma escola de balé onde eu estudei quando Lee e eu estávamos em Los Angeles, então provavelmente havia uma forte conexão intuitiva entre nós desde o momento em que nos conhecemos.
Acho que minha audição foi boa, e voltei para casa, em Nova Jersey, me sentindo cautelosamente otimista sobre ser escalada para Gilmore Girls. Sabia que haveria uma espera antes de ouvir qualquer coisa — como sempre, os executivos de Los Angeles teriam que assistir, debater interminavelmente e flexionar seus músculos sobre cada fita de audição, enquanto eu continuava minha vida em South Orange com meu marido e nossos animais de estimação, repetindo um dos meus mantras usuais: “Se for para dar certo, dará. Se não for, só me deixará disponível para o que eu deveria estar fazendo em vez disso.” (Às vezes era reconfortante; às vezes, não.)
Mas uma coisa é esperar, e outra é esperar. Robert me atualizava de tempos em tempos com “notícias” sem sentido, como: “Eles estão realmente interessados e, claro, se o interesse continuar, você terá que ir para Los Angeles para fazer um teste para os executivos do canal e do estúdio”, e a igualmente inútil: “Eles querem definir os papéis de Lorelai e Rory antes de focar na escalação dos outros regulares.”
Parecia que a primeira escolha deles para Lorelai era uma atriz chamada Lauren Graham, que estava trabalhando em outro projeto e não estava imediatamente disponível. Quanto ao papel de Rory, estavam considerando uma jovem novata chamada Alexis Bledel, mas ela havia feito uma boa audição e outra nem tão boa, e estavam tendo dificuldades para se decidir sobre ela.
Finalmente, quando o telefone não tocava para agendar aquela audição em Los Angeles, eu perdi as esperanças. Se “os engravatados” ainda estavam em dúvida sobre me contratar, poderiam pelo menos ter me dado outra chance de fazer um teste. Mas, enfim. Não havia mais nada que eu pudesse fazer além do que já tinha feito. O resto dependia deles.
Ou, mais precisamente, o resto, como acabou sendo, dependia de Amy Sherman-Palladino.
O silêncio ensurdecedor foi quebrado numa tarde por outra ligação de Robert. Ele perguntou se eu estava sentada. Eu menti e disse que estava.
“Você não vai precisar ir para a Costa Oeste, afinal”, ele me disse.
Meu coração parou, até que ele continuou: “Não será necessário. Eles estão te oferecendo o papel de Emily em Gilmore Girls.”
Fiquei sem palavras para fazer a pergunta óbvia: O que aconteceu com aquela suposta audição obrigatória para “os engravatados”?
Anos depois, Amy me explicou.
“Eles continuavam me sugerindo nomes por meses”, disse ela. “Mas depois que vi sua primeira audição, eu continuava dizendo: ‘Não, eu já tenho a minha Emily.'”
Logo depois, com meu corajoso e solidário marido me incentivando, embarquei em um avião para Toronto no início de abril de 2000 para conhecer meus colegas de elenco e embarcar em uma aventura que duraria mais tempo, significaria mais para mim e me acompanharia por mais mudanças na vida pessoal do que eu jamais poderia ter imaginado.
The Third Gilmore Girl, de Kelly Bishop. Copyright © 2024 por Kelly Bishop. Gallery Books, uma marca da Simon & Schuster, LCC.
The Third Gilmore Girl será lançado em 17 de setembro nos Estados Unidos e já está disponível em pré-venda na Amazon Brasil nas versões física, ebook e audiolivro.